terça-feira, 6 de maio de 2008

Ibn Darraj, O Poeta de Cacela Velha

fotografia do largo da igreja, Cacela Velha
A tarde já se fazia longa quando resolvemos, eu e mais duas amigas, ir dar uma volta a Cacela, um dos raros povoados algarvios que continuam imberbes à febre dos empreiteiros. Na praça da pequena igreja, coberta por um céu azul, apenas esbranquiçado por uma ou outra nuvem solitária, de onde avistamos o imenso oceano delimitado pela linha do horizonte e deslumbramos o fascinante arrebentar das ondas que, de alguma forma, se une às escassas condensações do topo, reparei num grupo de senhoras que trajavam umas sumptuosas vestimentas, características dos países árabes. Veio-me imediatamente à cabeça a imagem de Benazir Butto, a grande líder paquistanesa que foi assassinada em plena campanha eleitoral, na cidade de Rawalpindi, em Dezembro do ano passado. Intrigada com tais presenças, logo tentei descobrir quem seriam e o que estariam ali a fazer. Sorrateiramente, olhei para os papéis que escreviam e constatei que se tratava de escrita árabe. Tive então a confirmação de serem mulheres do mundo islâmico. Mas a dúvida persistia. “De onde vêm e o que fazem em Cacela”, questionava-me. Um pouco mais à frente, junto de uma tasquinha onde se saboreia alguns petiscos, notei um aglomerado de gente. Desloquei-me até lá, dizendo às minhas amigas que algo estava a passar-se e que eu tinha que descobrir o quê. Chegada ao local do crime, perguntei a uma rapariga de óculos com um ar erudito que encontro era aquele de gente tão diversa. Ouvia-se falar árabe, espanhol e português ao mesmo tempo, o que servia para aumentar a confusão instalada. A mesma rapariga disse-me que se estava a homenagear Ibn Darraj, um poeta árabe que nascera naquela localidade no ano de 948. Serenei, pois tinha desvendado parte do mistério que me atormentara a mente. Esbocei um sorriso interno e continuei a minha investigação inesperada. Dispostas em círculo, as pessoas escutavam um senhor – o Presidente da Câmara de Vila Real de Santo António, muito provavelmente – que proferia um daqueles discursos repletos de conceitos caros, como são os de herança cultural, multiculturalismo, inter-penetração de culturas, e outros afins, a que estamos habituados a ouvir nas solenes cerimónias de homenagem que se realizam no nosso querido país. “Portugal no seu melhor, com um toque árabe!”, pensei. Enfim, começava a pegar o fio à meada. A temperatura estava amena, e vozes e gracejos escutavam-se por toda a parte. Notei também que algumas das pessoas do amontoado de gente tinham pendurado ao peito um crachá da Fundação Ali-Idrisi Hispano Marrequí. Concluí então que aquelas mulheres que há alguns minutos eu havia observado sentadas no banco do largo da igreja deveriam ser marroquinas. Mas, ainda assim, nunca cheguei a confirmar a minha suposição.
Havia festa em Cacela… Sessão de homenagem ao poeta da terra, que contou com a inauguração de uma placa evocativa, colocada sobre uma parede caiada, na qual foram inscritos o seu nome e um dos seus poemas, seguindo-se um concerto na igreja matriz. E Cacela continuava simples como só ela sabe ser. O evento cultural que ali presenciei fazia parte do programa do congresso “Itinerários e Reinos: uma descoberta do mundo. O Gharb al-Andalus na obra do geógrafo al-Idrisi”, co-organizado pela Câmara Municipal de Vila Real de Santo António e pela Fundação Al-Idrisi Hispano Marrequí. A título de curiosidade: Ali-Idrisi foi uma grande figura da geografia árabe medieval, cujo trabalho cartográfico revelou-se de extrema importância para o arranque das viagens europeias dos finais da idade média. E já agora: Gharb al-Ândalus era a região mais ocidental do al-Ândalus, que corresponde à parte do actual território português. Nela se incluíam cinco áreas principais – o termo de Coimbra, o estuário do Tejo, o Alto Alentejo, o Baixo Alentejo e o Algarve. E só mais uma coisinha: o fim do território Gharb foi assinalado com a conquista do Algarve pelo rei D. Afonso III.

Interrogo-me agora: “De que espanto fui assaltada quando vi tais criaturas? Do espanto da permanência inevitável do tempo, que no mundo veloz como o de hoje é tão difícil decifrar.”
· TIVEMOS,Em vez de uma longa vida de doçuraA travessia de vales e montes lamacentos;Em vez de noites breves sob os véusO temor da viagem no seio de infindável treva;Em vez de água límpida sob sombrasO fogo das entranhas queimadas pela sede;Em vez do perfume errante das floresO hálito esbraseado do meio-dia;Em vez da intimidade entre ama e amigaA rota nocturna cercado de lobos e de génios;Em vez do espectáculo de um rosto graciosoDesgraças suportadas com nobre constância.

ALVES, Adalberto O meu coração é árabe Assírio & Alvim, Lisboa 1987

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